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Ausência | Fala, Tu!

AGCOM: Saudações! Esta é a coluna “Fala, Tu!”, um espaço pensado para leitores da AGCOM expressarem suas opiniões, compartilharem obras e comentários. Podem ser cartas, crônicas, poesias, charges, fotografias, ilustrações, desenhos ou qualquer outro gênero textual. Hoje, contamos com um conto de Dylan Cavalcante, inspirado no curta-metragem "Ausência":

AUSÊNCIA

Ausência (2021), dirigido por Igor Cardoso.

Na janela eu sinto o vento da presença... mas só a minha própria. Nesta tarde chuvosa e solitária, na companhia dum cigarro barato, sinto que me falta algo, como se sempre faltasse - como se o "nada" fosse o único real perceptível. As cinzas do cigarro dizem-me respostas inauditas, as gotas da chuva lançam-me máximas filosóficas nunca antes descritas. Tento ouvi-las, busco esmiuçar este nada. A resposta é sempre silêncio. É preciso ir além do que já foi dito.

Destruir nossas certezas para criar novas incertezas é um jogo à beira do abismo - para desnudar as asas... ou morrer tentando voar. Mas eu não quero a morte, mesmo que ela me queira. O cigarro fala. Eu consigo ouvir! Pois vou lhes dizer o que este cigarro barato tanto tem me dito: "O jogo da vida é um lacrimejar de ausências. Se não permitires que entre, certamente arrombará a porta do absurdo. Olhe ao redor e veja quem estás contigo. Então... tu és a única presença. Se procuras um deus com todas as respostas: ele é ausência. Se procuras todos os sentidos: são ausências. Se procuras a inteira consciência: sinto muito, tu és a própria ausência".

O tempo passa: a noite acorda, o dia adormece. E o silêncio ainda permanece. Talvez não seja o cigarro querendo contar boas novas à personagem... Um momento! Apagou-se tudo. Tudo o quê? A luz e a esperança. Até quando viveremos no passado? Até quando esta ausência matará nossas energias?

Meu caríssimo leitor(a), tive que interromper meu fluxo de pensamento para me atentar à realidade latejante de minha gente tão massacrada e desumanamente subjugada. Povo repleto de carências: liberdade, equidade e o mínimo para se viver em sociedade! A corrupção é um genocídio silencioso. Voltamos ao silêncio, enfim...

Agora, sentada sobre a cama, Laura se deixa levar por palavras vazias, observa os livros e revistas que inundam o quarto velho-novo de desmesuras; o mesmíssimo quarto da janela descrita no início desta prosa. Sente o cheiro, vê conhecimento nas folhas e palavras - parece, porém, outra ausência. A quantidade não condiz com a realidade. Ah, não! A realidade. Outra vez a realidade. As lágrimas escorrem timidamente pelo rosto, lembrando gotas de chuva caindo lentamente do céu antes duma tempestade violenta. O vazio lhe invade. E dói. É doloroso não sentir nada! Uma profunda lassidão sentir a presença da ausência. Aliás, como fugir do que se é? Desde Platão, somos o movimento do desejo daquilo que não temos à ausência de desejo daquilo que já temos... Será uma verdade supra-sensível? As lágrimas não escorrem - o nada as impediram de cair. A epifania é só poesia vazia depois dum choro sem lágrimas...

A noite sonhou, parte do pensamento descansou; a outra certamente delirou. Agora é dia: o sol está vindo aos poucos; a rua, como sempre, está bem movimentada, num vai e vem de automóveis sem fim. O silêncio está ausente. Não há problema, a música é companheira na barulheira desordenada. Laura tenta descansar um pouco os pensamentos com suas músicas mais introspectivas, mas o pensamento não a larga, não a solta. Quer respostas. O que fazer com esta sufocante presença? Neste momento, Laura só quer ausência. Seu olhar confuso e dissimulado se volta para a janela, observando as nuvens e o céu clareado. Inconscientemente dá início a uma série de sonhos lúcidos e sua cabeça fica confusa, assim como seu olhar. Está cansada! Definitivamente está cansada de tanto pensar. Até a música que está ouvindo lhe dá socos no estômago: "Por que você não se decide? Eu estou gastando tempo vivendo em minha cabeça?". As perguntas ecoam e a desorganização mental perdura, desafinando a própria consciência da realidade. Não aguenta, não aguenta! Inquieta, levanta-se da cama e caminha em direção ao espelho que há no quarto. Defronte de si mesma, outra provocação lhe perturba a mente: "Este reflexo sou eu ou apenas um esboço de algo que me disseram que sou?".

O espelho transfigurava o olhar dissimulado de Laura para dentro dela mesma, obrigando-a entrar no absurdo mais fundo da existência: o significado que deu ao seu próprio Eu. Ainda está ligeiramente atordoada, como se o mundo houvesse desaparecido. Naquele instante, o único real - mesmo que distorcido - era o espelho mostrando um humano preenchido por vários "nadas". O vazio nem lhe doía mais, até porque: como sentir a ausência de tudo? Não! Não! Cá estou, entregue à contradição novamente.

Meu digníssimo leitor(a), peço-lhe perdão: pois não estou subestimando vossa inteligência com tais monólogos expositivos e contraditórios. Apenas não posso fugir das palavras que me vem; a ausência de sentido nessa história é o que traz movimento à esta prosa. Por obséquio, peço-lhe permissão para continuar. Que continuemos então...

Ausência (2021), dirigido por Igor Cardoso

Depois da viagem através do espelho, Laura ainda sente certa vertigem e náusea por tanto sofrimento inconsciente. O dia passou - mesmo que a lentidão tomasse conta do tempo -, ao menos tudo havia passado. A noite chegara: com o céu estrelado e sem grandes nuvens, acompanhado da lua sorridente sussurrando serenatas estelares. O clima estava confortavelmente agradável, com ventania leve que trazia calmaria. Finalmente, em semanas, a rua que perpassava na frente da casa de Laura estava em silêncio; não total, mas já era melhor do que o caos normalmente protagonista. Aproveitou, então, para deitar-se cedo na tentativa de ter um sono pesado sem sonhos. Chegara até pensar num sono tão pesado, mais tão pesado, ao ponto de fechar os olhos e torcer para nunca mais abri-los. No fundo de sua alma sobrecarregada - aquela era a inexorável vontade. Apesar do desejo inestimável em recusar o próprio sonho, no surrealismo das imaginações noturnas: o querer é abstrato e o sentir é substrato. Vos contarei, pois, o que houve neste rascunho de vida, no rabisco que é o sonhar, porque algo haveria de ser interpretado diante a tais relances imagéticos. Seus olhos, demasiadamente cansados, já fechavam-se de tanta confusão mental; mal sabia ela que a real turbulência estava por vir, na epifania fantasiosa dos sonhos. Acabou fechando os olhos de vez, aquietando a cabeça no travesseiro da cama por alguns segundos, até o delírio começar. Tudo se apagou e a alma de Laura entregou-se aos deuses da noite para embarcar na dangerosíssima viagem de si a si mesma. O delírio havia começado...

Eu estava num oceano, tentando permanecer boiando sobre as águas, distante de qualquer conglomerado de terras, não conseguia avistar nenhuma ilhota. E, apesar de ter muito medo da imensidão oceânica, eu estava tranquila, apenas preocupada em boiar. As ondas estavam ausentes, tudo encontrava-se calmo, mas a tempestade estava por chegar, talvez eu fosse o trovão da minha própria tempestade. A visão começava a ficar turva e os olhos tentavam enxergar o distante-próximo do horizonte fantasioso. As ondas começaram a vir… e a cada onda era uma enxurrada de mensagens ocultas. Tudo estava cruelmente próximo: todas as vontades, todas as negações, todas as desilusões, todos os demônios, todos os anjos, toda maldita felicidade e todo milagroso vazio; mas o sonho pertencia ao intangível. Eu era o próprio intangível. Meu epitáfio estava sendo construído nas profundezas daquele oceano. Então, para fugir daquelas ondas altamente turbulentas e para conhecer o que tanto me amedrontava naquele fundo, tive de dar início ao mergulho: ao mergulho para minha profundeza mais obscura.

Chegando nas profundezas, não encontrei completa escuridão, deparei-me com uma cidade velha, abandonada, fantasmagórica. O lugar abandonado era o que eu tinha me impedido de falar a vida inteira. Os prédios e as demais construções eram na verdade as minhas palavras nunca proclamadas; e as ruas eram caminhos desérticos que jamais haviam sido percorridas por mim mesma. Entrei na cidade e lá eu conseguia respirar. Por algum motivo havia oxigênio para respirar naquele ambiente submerso pelo oceano, talvez porque o lugar fosse eu mesma. Na medida que fui andando pelas ruas da cidade, fui também gritando o que sempre quis gritar - e aquilo tornava-me mais eu. Logo comecei a descrever para as construções abandonadas o meu grandíssimo e verdadeiro epitáfio, embora o tempo fosse curtíssimo. A verdade é que não se pode ficar tempo demais imerso em si mesmo, caso contrário, o afogamento é certo. Depois de dizer aquilo - as palavras do meu epitáfio - eu poderia morrer em paz, pois a minha ausência estaria preenchida. Então comecei:

"O pensamento não cabia em palavras nem as palavras cabiam no pensamento - o expressivo era inexprimível porque a verdade estava enterrada no subsolo do esquecimento. Só se sabe bem sobre a verdade quando escava bem o poço da mentira. O delírio me fazia infinita, mas tudo era delírio. Ao menos na escrita crua eu ganhava; no entanto, a verdade nua eu inventava... Escrevia até contos e crônicas sobre essas mentiras: tornava-me invenção de mim mesma. O que é a vida senão invenção? O sentimento não cabia no coração nem o coração cabia no que tinha de caber. Sei que algo tinha que haver, um nada não podia prevalecer. O pulsar era o que me levava ao movimento, o movimento das imaginações. Enquanto eu imaginar, o sentimento há de gritar. Enquanto sonhar, o sangue há de pulsar. O sentimento do mundo me era infindável e a vontade de ser me era inacabável. Sou o que sou enquanto escrevo o imensurável de mim mesma, não quero aprisionar-me no que imaginei, quero ser o que ainda não imaginei. A imaginação é uma ponte para minha futura superação, e não quero apenas ser, ser é uma obrigação! Desejo ir além do que já fui e do que ainda hei de ser: o que desejo é o perigoso inimaginável.

Ausência (2021), dirigido por Igor Cardoso

E eu? O que fazer do que me tornei? Cansei de tentar tornar-me aquilo que não sei. Cansei de buscar aquilo que nunca quis. Talvez eu fosse mais feliz se me deixasse ser de coração inteiro, mas também não sei se poderia ser feliz somente com o coração. É preciso do pão para dar início à uma manhã. Mas eu estou tão perdida! Não sei como vim parar aqui: nisso... nisso que me tornei. Eu choro, eu choro muito. E nem sempre é um choro visível. Todavia, o meu querer é maior do que a mim mesma; a pérola da existência é não desistir do que se é, mesmo que "o que se é" esteja afogado em arrependimento. Acima de tudo - até de deus! - o importante é não envergonhar-se do próprio significado que deu ao sorriso que lhe traz o misterioso canto da vida. A vida é um livro inacabado…

Viver é uma invenção e a morte é uma mensagem não decifrada. Aqui, quem vos fala, com olhar e audição deteriorados, é a própria contradição humana. Sabemos mais do que deveríamos saber e ignoramos mais do que não deveríamos ignorar - ser gente é contraditório, ser é um código. Verdade e mentira são gírias do dicionário inominável. Somos uma transição do zero ao um - e mesmo assim, temos a prepotência de querer o infinito. A humanidade é um ponto na reta. Eu sou o que escrevo para o meu Eu imbatível. Acho que entendi... quero ser um sorriso verdadeiro e o choro encharcado.

Como eu disse: o pensamento não cabia em palavras nem as palavras cabiam no pensamento. O fim é meu início e o início é meu fim, agora eu sou o meio, e o meio quer dizer: indecifrável. Enfim, paro de tentar explicar, porque só a tentativa já é inexplicável..."

O delírio terminou, o epitáfio foi escrito e Laura nunca mais acordou, sua vontade de não abrir mais os olhos tornara-se realidade. Laura se afogou no próprio oceano: ficou tempo demais dentro de si mesma tentando achar respostas para suas ausências infinitas. Não percebeu que a vida é curta demais para lhe dizer tudo. Às vezes o "tudo" é só uma pequena parte e o "nada" é o inteiro que precisamos abraçar para escutar não só com os ouvidos, mas com o corpo inteiro, com a alma inteira. A ausência não é um vazio - é apenas ser, ser perante à lassidão absurda da existência sem querer alguma procedência. A verdadeira ausência somos nós, todos nós… O último sussurro que a vida deu à Laura foi: "contenta-te contigo mesma".

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