Seca impede transporte fluvial em comunidades ao norte do arquipélago e moradores abrem valas para evitar o isolamento.
Por Thales Lima
Bailique (AP) - Moradores do Bailique, distrito a 180 quilômetros de Macapá, capital do Amapá, vêm buscando alternativas para lidar com o processo de assoreamento dos canais que dão acesso às comunidades ao norte do arquipélago. O acúmulo de sedimento não é novidade, há alguns anos os moradores vêm percebendo a deposição de terra e o surgimento de praias. Este ano o fenômeno está impactando com maior força comunidades inteiras. Voadeiras e pequenas rabetas, principais meios de transporte na Amazônia, sentem dificuldade em transitar por estes canais que ficam rasos demais para a locomoção dos veículos. Comunidades temem o risco de ficarem totalmente isoladas.
Henrique Menezes é pescador e agricultor, morador da comunidade Jaranduba, no centro do Bailique. Apesar de sua comunidade não estar sendo afetada pelo assoreamento, trabalha em uma produção na zona norte do Bailique e utiliza o canal todos os dias. Foi Henrique e outros amigos que mobilizaram por grupos de WhatsApp o mutirão para abertura da vala na localidade de Marrequinhas. Ao todo, foram 43 pessoas envolvidas, que, com dificuldade por conta da areia, cavaram 200 metros de comprimento, com um metro e meio de largura.
"Esse assoreamento está prejudicando todos os sentidos, todos os itens sociais. A área da saúde é muito complicada, na hora da emergência não tem como trazer um paciente aqui pro centro do Bailique, aqui pra Vila Progresso onde tem os melhores atendimentos. E aí, é complicado, é uma região que é comum picadas de cobra, ferrada de arraia, fica complicado uma pessoa adoecer e for uma emergência. Se não for de avião tem que enfrentar o oceano", comenta o pescador.
O setor primário, principal atividade econômica das comunidades, também é comprometido. Os agricultores familiares e os extrativistas que vivem principalmente da retirada do açaí e palmito não conseguem escoar sua produção. Os pequenos criadores de gado também sentem dificuldade em abastecer os açougues da região central do arquipélago.
"A pesca artesanal, os rios, os igarapés todos secando, uma seca realmente extrema. Aí onde o pescador capturava seu pescado antes, hoje não pega mais o peixe. E quando pega não tem como trazer de catraio, de embarcação pequena aqui para as comunidades maiores para vender para o consumidor”, comenta Henrique.
Moradora na comunidade do Arraiol, a professora Diana Araújo alerta para a situação gravíssima: a educação. Com o assoreamento, os alunos não tem como chegar à escola ou chegam com sacrifício, andando por longas praias e enfrentando lama. A carga horária das escolas não conseguem ser cumpridas, prejudicando o aprendizado das crianças.
"Os nossos filhos têm que ir estudar na outra escola que é lá na comunidade do Livramento, mas o igarapé onde a escola fica não tem mais água, se tornou só uma praia na frente. Aí as crianças descem dos barcos bem longe e andam assim uns 20 minutos para chegar na escola. E agora no verão é seco, mas é no inverno que é molhado, né? É mais arriscado ainda. No modular – modelo de ensino mais flexível no currículo e carga horária – eles passam até três dias sem ter aula devido não ter água para chegar lá na escola", disse Diana.
Diana afirma que quando foi morar na comunidade, o igarapé que passa na frente da sua casa era bem estreito, capaz de se atravessar sem molhar as roupas. Com o tempo, a erosão atingiu fortemente a comunidade, onde as casas tiveram que recuar para trás para evitar perdas. Neste momento ela viu o igarapé ficar fundo, mas, hoje, ela vem percebendo o igarapé ficar cada dia mais seco. Diana teme que no futuro todos na comunidade fiquem com dificuldade em transitar pelo igarapé.
Essa mudança constante é comumente percebida pelas pessoas das comunidades no Bailique. Por se encontrarem em uma zona costeira, estão suscetíveis a diversas mudanças no seu território. Os ritmos de maré e até mesmo fenômenos como a pororoca movimentam muitos sedimentos, fazendo com que as áreas percam ou ganhem porção de terra.
O bailar das ilhas
Atualmente, vivem cerca de 13 mil pessoas no arquipélago do Bailique, um conjunto de oito ilhas. São 57 comunidades banhadas pelo rio Amazonas, com acesso apenas por via fluvial. A denominação do arquipélago do Bailique vem da língua indígena Tupi e quer dizer a região das ilhas que bailam, através das correntes do rio Amazonas.
Essa associação se deve muito pelo fato do território estar sempre em transformação. De que um lado cai, e de outro cresce. Nesse contexto, estão envolvidos três principais processos, erosão, acreção e o transporte de sedimentos. A erosão é a perda de faixa de terra, ocorrendo fortemente na região central do Bailique. Essa porção de terra é transportada junto a carga de sedimentos do próprio rio Amazonas, que ao encontrar o mar, devolve parte desse sedimento através das pororocas, depositando em áreas planas na região do arquipélago. Esse processo de acúmulo de terra e formação de áreas assoreadas é conhecido como acreção.
Com a criação de linhas de acreção, vão surgindo grandes bancos de areia, que são formados em um processo conhecido na geologia como acamamento de maré, como explica a Drª Valdenira Santos, pesquisadora do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (IEPA), aos falar sobre os processos costeiros na foz do rio Amazonas.
"Não vem só essa carga de sedimento pela pluma do Amazonas. Vem uma carga de sedimento pelo fundo, mais arenoso. Durante a troca de maré, que é o momento entre a enchente e a vazante, a corrente diminui e os sedimentos vão se assentando. Tem um sedimento indo pelo fundo, encontra um obstáculo, vai parando por ali. Vem aquela lama sendo depositada em cima dessa areia. Aí formam umas estruturas que são bem peculiares da nossa região, os acamamentos de maré. Vai ter uma camadinha de areia com uma camada de lama, camadinha de areia com uma camada de lama, até que esse banco ali que estava debaixo d'água, ele vai crescendo, através desse processo. Depois começa a ficar mais exposto ao sol, e sendo substrato rico em microrganismos e nutrientes, começa a dar vida a uma várzea ou um manguezal", explica Valdenira.
O processo de deposição de sedimentos é natural e contínuo, porém, vem desenhando uma nova realidade para comunidades como o Livramento. A agricultora Katiane Lopes acompanhou de perto a transformação do canal que passa na frente da comunidade do Livramento, onde mora. Katiane diz que, de 10 anos para cá, houve uma mudança significativa, os peixes sumiram e uma grande praia se formou na frente de sua comunidade.
"Nossa maior dificuldade aqui é a questão do acesso que está muito difícil porque tá longe. A gente tem dificuldade de vender as coisas. Eu vendo gelo aqui, faz meses que eu não consigo vender uma pedra de gelo devido à distância do rio. O pessoal não vem comprar devido o seco mesmo, as pessoas sentem dificuldade, é muito distante o rio da casa”, comenta Katiane.
No encontro do rio com o mar
A invasão do mar representa outro grave problema para as comunidades do Bailique. Localizadas na foz do rio Amazonas, essas comunidades enfrentam um constante embate entre as águas fluviais e marítimas, um conflito no qual o mar vem sendo o vencedor. As comunidades relatam que a salinização dos rios veio ficando mais forte nos últimos anos, acredita-se que pode estar fortemente associado ao aumento do nível do mar. Progressivamente, a antes abundante água doce, vem se tornando salobra com a presença da água salgada do mar, impactando diretamente o cotidiano e a subsistência da população local. Diana conta como as comunidades se organizam para a chegada da água salgada.
“A gente vem há bastante anos já sofrendo com a situação da água salgada. E aí, o que que a gente fez? Cada família comprou caixas d'águas a mais. Aí, no período do inverno, a gente deposita, recolhe da calha, a gente trata essa água da chuva. Aí, já lá, quase no final do verão, a gente começa a [caixa] do inverno. Só tem um porém que essa água a gente consegue conservar só para o alimento e para beber. Para tomar banho, é água salgada mesmo”, comenta a professora.
Essas mudanças, embora sejam fenômenos naturais, trazem consigo necessidades de resposta aos desastres e adaptação. Segundo relatório disponibilizado pela Defesa Civil do estado e a Companhia de Água e Esgoto do Amapá - CAESA, nos últimos anos, o Governo do Estado do Amapá prestou auxílio para as comunidades com distribuição de água e kits alimentícios. No ano de 2023, foram distribuídas 2.056 unidades de caixas d 'água em todo o arquipélago, garantindo a capacidade de armazenamento de 4,1 milhões de litros de água potável durante o período do fenômeno de salinização das águas.
Agora em 2024, a ação governamental de assistência às comunidades garantiu 20 mil litros de água potável, 250 galões de água mineral de 20 litros, 250 kits de alimentos, além de atendimentos de saúde para cerca de mil moradores. As medidas adotadas pelo governo visam atender as famílias onde a água já ficou salgada. No entanto, nenhuma ação foi realizada diretamente para atender os afetados pelo assoreamento dos canais na região norte do arquipélago.
Enquanto isso, Henrique pretende mobilizar novos moradores de todas as comunidades do Bailique para um novo mutirão. A vala criada no canal ajudou permitindo o tráfego de pequenas rabetas, mas a força da natureza é maior. Segundo o agricultor, novos mutirões irão acontecer em outros trechos do canal, no entanto espera mais apoio do governo.
"O governo tem que ajudar. Nós temos, aproximadamente, 10 comunidades na zona norte que estão sofrendo com esse assoreamento. A nossa vala foi só mesmo para amenizar um pouco a situação, o sofrimento. A gente quer permanecer no Bailique, quer permanecer em nossa comunidade tradicional, é aqui que a gente produz, é dessa terra que a gente tira o nosso sustento. É daqui que vão os alimentos para a mesa do consumidor das nossas comunidades e também da capital", afirma Henrique.
Katiane também afirma que, apesar das dificuldades, também não quer sair de sua comunidade. Para ocorrer o mutirão, foi realizado um acordo entre as comunidades da zona norte para decidir cavar a vala no trecho do canal para permitir que os alunos cheguem na escola. No entanto, a agricultora acredita que a vala não vai durar muito devido a constante enchente e vazante que traz e leva muito barro.
“Quando vem a maré lançante, fica com muito barro. Então o que a gente tenta mexer lá, quando é duas lançantes, depois já tá tudo como estava antes, ela vai e coloca o barro todo no lugar. Então a gente tem que se acostumar e se adaptar que é a natureza que está mandando. Não tem jeito. É a natureza e a gente tem que acompanhar o que ela tá fazendo", diz Katiane.
A pesquisadora Valdenira reforça que as comunidades têm essa tendência natural de se adaptar em ambientes que estão em constantes mudanças. Acredita que muito dessa adaptação parte da necessidade de haver muito mais monitoramento desses fenômenos e escuta da própria comunidade para que as soluções possam ser mais efetivas dentro do território, promovendo o bem-viver das comunidades.
Talvez ainda não tenhamos uma solução definida para contornar a situação das comunidades afetadas pelo assoreamento do rio, muito por não entender qual o ritmo desses fenômenos. Por isso, Valdenira defende o trabalho do Observatório Popular do Mar (Omara) como meio de coletar dados georreferenciados e observação constante pelas comunidades, medindo os efeitos dos processos costeiros. Todos esses dados tratados cientificamente e disponibilizados como informação para as comunidades tomarem conhecimento.
"Com essas informações, eu consigo desenhar tecnologias que atendam a essa condição do ambiente. Porque às vezes a gente quer inverter. A gente quer desenhar as tecnologias sem ter a informação e aí muitas das vezes não funcionam porque eu não compreendi o processo que está acontecendo ali. Para eu ter uma tecnologia, preciso fazer uma inovação que seja adequada àquela realidade da região, aí sim, eu estou fazendo adaptações para melhorar a qualidade de vida da população", explica Santos.
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